Por Camila Coubelle.

Poucos metros antes do molhe da Barra do Chuí, ponto final depois de 7 dias e 230 quilômetros de caminhada, olhei para trás e percebi que o mar apagava algumas das nossas pegadas. Parecia uma despedida e eu comecei a andar mais lentamente, tentando prolongar o momento. Até lembrar que as marcas que uma experiência como essa deixam em nós são impossíveis de apagar.

A jornada começou sete dias antes, 2 de março de 2019, com um entusiasmo digno de um sábado de Carnaval. Uma a uma, as doze pessoas do grupo desciam do carro de apoio com um sorriso que ainda não predizia como seriam prazerosas suas companhias. O clima era de descoberta, expectativa, o dia estava lindo e com um sol literalmente “no ponto”. Distraídos com os carros, trailers e atrações como o Navio Altair, nem vimos o dia passar.

Apesar disso, a palmilha gasta da minha bota provocou bolhas, o que tornou o segundo dia mais difícil. Ainda mais que um dos monumentos que inspiram o nome Caminho dos Faróis, o Farol do Sarita – primeiro dos quatro pelos quais passamos durante a travessia – parecia não chegar nunca. Os outros são o Farolete Verga, o menor deles, o Farol do Albardão, o mais bonito, e o Farol do Chuí, o mais aguardado, no final da travessia de uma das maiores praias do mundo. Ainda passamos por complexos eólicos, esqueletos de navios e animais encalhados, ruínas, florestas de pinus, aves, dunas, conchas, e, infelizmente, lixo. Muito lixo, onde não chegavam nem os pássaros, o que nos despertava debates sobre como poluímos os oceanos, às vezes, até sem ter a intenção.

O terceiro dia foi curioso: apesar de ser o mais longo, com 38km, foi o que andamos mais rápido. Acho que o medo da dificuldade era tanto que praticamente corremos dele. O quarto foi de chuva inesperada logo pela manhã. Senti saudades do sol. E aí o quinto e o sexto dia foram de um sol tão escaldante que tive saudades do vento. E às duas da manhã um vento de 80km/por hora nos obrigou a procurar outro abrigo, mas a essa altura isso era só uma aula a ferro e fogo de como contornar os problemas. Algo óbvio que às vezes a gente esquece: a união faz a força. E a resposta para todos que perguntaram por que eu iria fazer essa caminhada é essa. Aprendizado. Autoconhecimento. Fortalecimento físico e mental. E sendo mais poética, o sal e o sol, que adoçam um pouco a alma.

Tem coisas que eu não sei precisar se aconteceram no segundo ou no quinto dia, por exemplo.

Parece clichê, mas tudo ganha proporções muito maiores nesse tipo de situação. Eu saboreei uma maça como se fosse a melhor iguaria do mundo. Ela tinha uma textura diferente de todas as outras que já comi na vida. Ter uma sacola para guardar roupa suja e não ter areia dentro do saco de dormir eram prazeres secretos. Mas também vivenciei tristeza e felicidade na mesma proporção. Tristeza por ter que me despedir de um cachorro em especial, logo eu que não sei bem lidar com a morte. Talvez tenha aprendido um pouco mais. O momento mais feliz foi depois de sair do Bar do Seu Zé, no Hermenegildo, na metade final do último dia, e eu ainda não sei a explicação. Eu estava para trás, correndo contra o vento e rindo sozinha sem saber por quê. Mas houveram vários outros.

Como já tinham alertado, o desgaste mental era ainda maior que o físico, por causa da constante linha reta em um ambiente inóspito e deserto. Por vezes eu me peguei pensando em coisas negativas, ou com a sensação de que meu pé estava ensanguentado dentro da bota, ou que o horizonte e as coisas estavam rodando. Nesses momentos, as pessoas que estavam ali eram fundamentais. Ao compartilhar sua experiência, contar uma história…. Existiam os que faziam rir, e os que faziam refletir. Alguém que parava para esperar, ou apenas caminhava em silêncio ao seu lado.Os que faziam planos de viagens futuras juntos. As biólogas que davam nome a coisas desconhecidas para mim. Tinha quem pingasse um colírio no olho sujo de areia no fim do dia. Os parceiros de pôr do sol, chimarrão e fogueira.

Quem não conseguiu lidar com a dor nos pés conseguiu lidar com a dor de enterrar o Chuí. E no fim das contas as pessoas se completam, não é?! Todos têm algo a ensinar, a contribuir. Todos têm seu brilho especial. Sou grata por viver isso, e creio que essa comunhão com a natureza e as pessoas me torna alguém melhor.

Em tempo, a travessia vai do molhe oeste da Barra do Rio Grande, cidade mais antiga do Rio Grande do Sul, até o molhe do Arroio Chuí, na divisa com o Uruguai. As dicas que eu dou são: não tente ir sem um minucioso planejamento. Sem os equipamentos adequados, sem a alimentação correta, sem cuidar da água e sem cuidar dos pés. E sem alguém para te apoiar. E torça para ter sorte.

Nós tivemos muita sorte. Com o grupo, com a previsão do tempo, por tudo ter transcorrido sem grandes problemas, sorte por cada pôr do sol que presenciamos, pelas noites estreladas…

Curioso essa praia se chamar Cassino. Não existe termo melhor para relacionar sorte e definir o tanto que a gente ganhou por lá. De novos amigos a novas histórias, quebramos a banca. E aposto tudo que a próxima será ainda melhor!

Camila Coubelle
vidasemparedes.com.br



Veja as fotos da travessia registradas pelo grupo

Álbum – Fotos da Travessia dos Faróis por Camila Coubelle

 

Álbum – Fotos da Travessia dos Faróis por Erick Sanz

 

Álbum – Fotos da Travessia dos Faróis por Rose Furriel

 

Álbum – Fotos da Travessia dos Faróis por Sueli Tostes

 

Álbum – Registros da Travessia dos Faróis por José Fernandes

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